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O risco Meirelles

André Siqueira e Márcia Pinheiro

Fonte: CartaCapital

Entre intermináveis consultas ao palm top e leves bocejos, o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, costuma atravessar incólume as reuniões ministeriais no Palácio do Planalto. Mas há quem perceba, nos gestos afáveis ou na recorrente expressão de esfinge, o espírito sempre pronto a evitar que prospere qualquer idéia capaz de abalar os alicerces dos fundamentos da política macroeconômica, na acepção do próprio Meirelles e da turma do BC.

Tivesse o restante da equipe econômica não atrelada ao BC soluções brilhantes para os impasses atuais da economia, e a vida na Esplanada, compartilhada com o guardião Meirelles, já seria difícil. Nestes meados de maio, por exemplo, enquanto uma parte do governo tentava dar sentido ao pacote de política industrial e à criação do fundo soberano, o presidente do Banco Central deixava escapar, à boca pequena, a ameaça de um aumento de 1 ponto porcentual na taxa de juro na próxima reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), em 4 de junho, caso a União não decida promover um corte substancial nos gastos públicos. O Brasil sustenta hoje um dos juros nominais mais altos do mundo, 11,75% ao ano.

As posições nos mercados futuros das últimas semanas já refletem essa intenção do BC. Postura, no mais, afinada com os principais defensores da ortodoxia econômica na academia e nas finanças. Os efeitos de um aumento nessa proporção são conhecidos: mais entrada de recursos de investidores estrangeiros, maior valorização do real perante outras moedas e a conseqüente piora do déficit das contas externas, cujo rombo, nas condições atuais, deve atingir 20 bilhões de dólares até o fim do ano. Sem falar no freio à expansão dos investimentos privados e no ritmo de crescimento da economia.

Em resumo, Meirelles pretende exercer a função de quem foi eleito pelo voto nas últimas eleições. Segundo o coordenador do Núcleo de Economia Industrial da UFRJ, David Kupfer, “exigir que o presidente corte gastos, simplesmente, é tentar convencê-lo a não governar, diante de tantas demandas da sociedade. Com o câmbio e o juro fora do lugar, resta a alternativa de buscar metas mais flexíveis para a gestão monetária, sem medo de mexer em um time que parece estar ganhando, mas pode ser responsável por uma nova trombada, como a do fim de 2004, quando o ciclo de crescimento foi abruptamente interrompido”, argumenta o economista.

Para Kupfer, as ferramentas utilizadas pelo BC para atingir as metas de inflação são as mais conservadoras possíveis. “A economia brasileira está estranha. Diante de qualquer fato novo, a resposta é o aumento de juros. Quando tudo está em paz, as quedas são muito lentas”, diz o economista. “Com o quadro atual, o governo se vê obrigado a um esforço para evitar que o plano seja visto apenas como uma compensação dada à indústria”, avalia o economista. Ele destaca o fato de as medidas terem sido elaboradas com focos diferentes, de acordo com o grau de amadurecimento de cada setor contemplado. “A política não pode ser a mesma para indústrias nascentes e para as fragilizadas pela concorrência internacional.” Talvez fosse o caso de levar a sério uma proposta que Delfim Netto gosta de fazer, em tom de brincadeira. O ex-ministro acha que está na hora de “estatizar o Banco Central”.

Incapaz de conter a fúria ortodoxa do BC, com um simples basta, o Palácio do Planalto deixou vazar uma proposta formulada pelo economista Luiz Gonzaga Belluzzo, consultor editorial de CartaCapital. Belluzzo propôs um aumento do superávit primário dos atuais 3,8% do Produto Interno Bruto (PIB) para 5%. O maior esforço fiscal poderia estimular o BC a interromper o aumento dos juros ou até promover uma redução da taxa ao longo do ano. Não se sabe se há consenso no governo sobre a adoção da proposta.

O que a ala desenvolvimentista da administração Lula vai tentar mais uma vez, sob o ceticismo dos agentes econômicos, é emplacar um novo pacote de estímulo à inovação e às exportações. Na segunda-feira 12, em evento que reuniu o presidente Lula e uma dezena de ministros, o governo anunciou uma série de incentivos. Basicamente, o pacote prevê reduções tributárias no valor de 21 bilhões de reais até 2011.

O programa Política de Desenvolvimento Produtivo é resultado de um diálogo entre os representantes do empresariado e o Ministério da Fazenda travado nos últimos meses. Os industriais prepararam um extenso levantamento das necessidades do setores e o apresentaram a representantes do governo, entre eles o ministro do Desenvolvimento, Miguel Jorge, e o secretário-executivo da Fazenda, Bernard Appy.

De acordo com a avaliação da consultoria Arko Advice, “o programa conta com quatro macrometas e medidas de desonerações e de financiamento”. A primeira pretende elevar a participação do investimento no Produto Interno Bruto (PIB), para 21% em 2010 (hoje está em 17,6%). A segunda visa o estímulo da pesquisa e desenvolvimento (P&D). A intenção é elevar os investimentos do setor privado em P&D dos atuais 0,51% do PIB para 0,65%. A terceira tem como meta estimular as exportações, de tal forma que subam dos atuais 160 bilhões de dólares para 208 bilhões de dólares. Na última, o foco é o apoio a pequenas e médias empresas exportadoras.

A associação que representa o setor de máquinas e equipamentos, a Abimaq, elaborou um estudo, no fim de 2007, em que apontava o processo de desindustrialização ocorrido no Brasil nas últimas duas décadas. A formação bruta de capital fixo caiu de 24% do PIB, em 1980, para 17% no ano passado. O peso da indústria de transformação sobre a riqueza gerada no País despencou de 36%, em 1985, para 18%, em 2006. Os fabricantes de máquinas nacionais já estiveram entre os cinco maiores do mundo, mas hoje desceram para o 14º lugar no ranking.

A entidade levou ao governo uma lista com as principais medidas necessárias para reposicionar a indústria a patamares próximos aos do passado – sem a pretensão de ultrapassar países como China e Coréia. Segundo o vice-presidente da Abimaq, José Velloso, a maioria das sugestões foi contemplada pelo governo no pacote. Mesmo assim, ele acredita não ser possível atingir os objetivos propostos no trabalho, e mesmo os apresentados pelo governo, com o real e o juro nos elevados patamares atuais.

“Não há dúvida de que a vida vai melhorar com a política apresentada pelo governo. Mas quem pensa em investir em aumento de produção ainda pode preferir comprar títulos públicos, diante da alta remuneração”, afirma Velloso. “A indústria fez o dever de casa, durante os anos seguintes à abertura do mercado. Agora vamos cobrar que o governo faça a sua parte e reduza os próprios gastos para permitir a queda dos juros.

Para o diretor da Abimaq, as medidas têm o mérito de quebrar paradigmas, como indica a ampliação da linha de financiamento de máquinas e equipamentos do BNDES (Finame), de cinco para dez anos, com dois anos de carência. Outro exemplo seria a redução do spread nas operações de financiamento bancário para os investimentos em capital fixo. Velloso cita ainda as medidas para desonerar as vendas do setor, como a suspensão do IOF, e equiparar o custo das peças nacionais ao dos componentes importados (o chamado drawback verde-e-amarelo).

O setor ferroviário, outro dos principais contemplados pelo programa, ficará isento do pagamento de PIS, Cofins e IPI, uma desoneração que deve atingir 2,6 bilhões de reais até 2011. Apesar de o mercado doméstico ter atravessado um processo de aquecimento nos últimos anos, a capacidade de produção do setor, na casa de 12 mil vagões por ano, é muito superior à demanda esperada em 2008 e prevista para os próximos anos, pouco acima de 3 mil unidades anuais. Em 2002, quando as operadoras logísticas tiraram o atraso de mais de uma década de marasmo na rede ferroviária federal, a indústria renascente chegou a entregar mais de 7 mil vagões.

“Estamos preparados e precisamos ocupar mais espaço no mercado internacional. Mas, com o câmbio tão desfavorável, as medidas anunciadas pelo governo têm um efeito apenas paliativo sobre nossa competitividade externa”, diz o diretor-executivo do Sindicato Interestadual da Indústria de Materiais e Equipamentos Ferroviários e Rodoviários (Simefre), Francisco Petrini.

Segundo o executivo, só neste ano a indústria nacional vai retomar a fabricação de locomotivas pesadas, acima de 3 mil HP, porque antes as transportadoras de cargas preferiam importar máquinas usadas e reformá-las no Brasil. Além do risco de abortar a reconquista do espaço doméstico, Petrini teme os efeitos negativos do real valorizado sobre a ampliação da exportação de vagões, que hoje é de apenas 10% da produção nacional, e de peças e equipamentos, segmento que vende para o exterior cerca de 40% do material saído das fábricas.

O diretor do Simefre lembra que a Vale, principal compradora da indústria nacional, tem um compromisso de dar preferência aos fornecedores brasileiros, mas em 2003 importou 1,1 mil vagões da China, sob a alegação de que o setor não teria condições de dar conta de toda a demanda. “Estamos dispostos a continuar batalhando, ao lado da Fiesp, para sensibilizar o governo da necessidade de reduzir a valorização do câmbio, especialmente depois de o País receber o investment grade e estar à espera de um fluxo de dólares ainda maior”, afirma Petrini.

Segurar os efeitos da valorização do real é tarefa que nem a redução da taxa de juro seria capaz de fazer diante do quadro atual, de acordo com o economista Ricardo Carneiro, da Unicamp. “De qualquer forma, um custo de financiamento mais baixo evita que alguns setores percam ainda mais competitividade”, diz. O professor lembra que o superávit comercial do País é mantido graças às commodities agrícolas, o que justifica todo o esforço possível para dar apoio à área manufatureira, tradicionalmente deficitária. “Não acho que, com o câmbio trabalhando contra, será possível aumentar a participação brasileira no comércio internacional de 1,18% para 1,25%, como o plano prevê.”

Apesar das condições adversas, Carneiro destaca o mérito da política industrial, ao expressar a preocupação do governo com diferentes setores produtivos. Com tratamento diferenciado das áreas que sofreram mais com a exposição à concorrência externa, como as empresas de alta tecnologia, as medidas revelariam um esforço estrutural, de longo prazo. “Mas a eficácia das medidas exigiria outro contexto macroeconômico, sobretudo depois de alguns setores perderem espaço com a desvalorização do dólar”, ressalta.

Na indústria calçadista, o impacto do câmbio foi decisivo para abortar a expansão nos últimos três anos. “Até 2004, vínhamos avançando no mercado internacional a um ritmo de 18% ao ano. Depois do início da trajetória de valorização do real, conseguimos a duras penas manter os embarques estáveis”, diz o diretor-executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados), Heitor Klein. “Agora enfrentamos a ameaça das importações, que aumentaram 50% nos primeiros quatro meses do ano.”

Klein considerou “tímido” o plano apresentado pelo governo. Medidas específicas para cada indústria devem ser definidas em cerca de um mês, após mais duas reuniões com representantes dos empresários. “Até agora, o que foi anunciado é muito pouco para compensar a competitividade perdida nos últimos anos”, avalia o executivo. “O peso de PIS e Cofins aumentou 4,5%, na prática, quando as contribuições deixaram de ser cumulativas. Agora o governo propõe reduzir o prazo de compensação de taxas pagas por antecipação e acha que essa é uma grande vantagem.”

Uma área que recebeu, de saída, um tratamento diferenciado no plano foi a da chamada economia do conhecimento. O pacote permitirá às empresas exportadoras de tecnologia da informação e comunicação reduzir à metade as contribuições à Previdência. Segundo o presidente da regional paulista da Associação das Empresas Brasileiras de TI, Software e Internet (Assespro-SP), Roberto Carlos Mayer, o corte equivale a uma desoneração de 13,5% sobre a folha de pagamento. “Como os funcionários representam 30% dos custos para os produtores de software, o impacto total da medida, para a indústria, será de cerca de 4%”, conclui o executivo. “A medida é boa, mas dizer que contrapõe a queda do dólar é exagero.”

Mayer também teme que a medida deixe de beneficiar empresas que vendem para o exterior por meios como a internet, sem que a operação seja registrada pelo BC. “Na área de software, nem sempre temos um produto a ser transportado. Muitas multinacionais compram ferramentas pela subsidiária local e as levam para filiais de outros países”, explica. Pelos números oficiais, as exportações do setor somam 150 milhões de dólares ao ano, mas os empresários estimam que essa cifra, na prática, chegue a 400 milhões de dólares.

O presidente da Assespro defende a adoção de mecanismos que permitam ampliar o leque de companhias contempladas pela desoneração da folha, como meio de estender os impactos positivos da medida sobre o número de empregos formais. É comum, no segmento de fabricação de software, que as empresas utilizem formas alternativas para contratar pessoal. As práticas mais usadas são a exigência de que os profissionais abram empresas para prestar serviços ao contratante, ou sejam registrados com valores inferiores aos que recebem de fato.

Segundo Mayer, nas pesquisas setoriais as empresas de software revelam empregar 350 mil funcionários, mas a soma obtida a partir dos relatórios entregues ao Fisco não passa de 250 mil empregados. “Com menores encargos sobre a folha, é possível aumentar as vagas formais”, avalia. “O setor é pequeno em faturamento, mas tem um efeito cruzado muito grande. Se sustentamos um crescimento de 15% ao ano, isso quer dizer que um número cada vez maior de empresas brasileiras está informatizado, o que aumenta a competitividade da economia como um todo”, afirma.

Outra novidade da semana foi o anúncio da versão nativa de um fundo soberano. Por conceito, esse instrumento é usado por países que têm forte ingresso de dólares, como hoje os emergentes, em razão do alto preço das commodities. Possuem reservas internacionais polpudas e não querem que as divisas extras impliquem inflação ou aumento da dívida interna. É preciso lembrar que os dólares que ingressam no Brasil, por exemplo, são trocados por reais. E o Tesouro Nacional compra o montante, o que em economês chama-se de esterilização, e emite títulos da dívida interna. Ou seja, há um crescimento do débito do Tesouro junto aos investidores.

Ao modo brasileiro, contudo, o fundo funcionará de forma diferente. Vai receber recursos fundamentalmente do excesso da arrecadação. Em termos econômicos, o que exceder a meta do superávit primário. Dólares comprados pelo Tesouro no mercado também farão parte desse “cofrinho”, como disse o ministro da Fazenda, Guido Mantega. O dinheiro será usado para beneficiar as empresas brasileiras que operam no exterior, como a compra de suas debêntures (títulos de dívida privados). A entrevista coletiva foi confusa e atabalhoada e gerou interpretações e críticas ferozes. Além disso, o ministro não deu detalhes técnicos de como vai viabilizar o fundo.

Na avaliação da MCM Consultores, poderá ser instituído por medida provisória ou projeto de lei. No segundo caso, porém, não se espera que o Congresso vote um tema de tamanha importância em ano de eleições municipais. De todo modo, Mantega tem o dever de explicar melhor as intenções com a criação do fundo. Assim como o governo precisa deixar claro o caminho que pretende tomar para que a economia brasileira possa responder aos estímulos de crescimento, sem as amarras da área monetária.

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