Informe especial Desenvolvimentistas: Os perigos da limitação ao endividamento público proposto no PRS 84, de José Serra
Limitações ao endividamento público: Lobo em pele de Cordeiro?
Por Roberto Requião e Lindbergh Farias
Com muita satisfação vimos nos últimos tempos que nosso colega, o Senador José Serra, como grande economista que é, tem feito críticas bem fundamentadas contra os juros elevados e os excessos das operações de swaps cambiais. O Senador mais uma vez inova ao popularizar e tornar conhecido para nós políticos o termo “dominância fiscal”, nos ajudando, assim, a entender o imbróglio em que irresponsavelmente nos meteu o Banco Central nos últimos dois anos, em razão de um aumento exagerado dos juros e excesso de operações de swap cambial.
Essas críticas estão bem colocadas no relatório que ele fez na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal sobre uma emenda de sua autoria que almeja limitar o endividamento público.
Infelizmente, a ótima qualidade das críticas não pôde ser transmitida para o texto normativo. O projeto, que propõe estabelecer limites muito específicos e estreitos ao endividamento público, não tem uma conexão muito precisa com os argumentos válidos do relatório. Com pesar, temos que admitir que o discurso sensato e inteligente do Senador José Serra não conseguiu se consolidar na proposta legislativa, apesar da alta qualidade técnica do relatório e dos cuidados republicanos para dar flexibilidade aos limites propostos. Pretendemos, humildemente, mostrar abaixo o porquê não concordamos com a proposição.
Resumidamente, podemos dizer que o projeto propõe um limite muito estreito para a dívida pública bruta e para a dívida pública líquida, respectivamente, de 4,4 e 2,2 vezes a Receita Corrente Líquida da União. Hoje esses patamares estão em 5,6 e 2,2 vezes a Receita Corrente Líquida.
Em primeiro lugar, devemos lembrar que o projeto não tem a seu favor nenhum exemplo internacional bem-sucedido entre as grandes nações. Isso não é bom, porque, em um tema que pode afetar a vida de milhões de pessoas, precisamos ser muito cuidadosos e usar o máximo dos exemplos históricos para evitarmos erros.
Em segundo lugar, devemos lembrar que, quase certamente nenhuma das grandes potências do mundo hoje se enquadrariam a esses limites. Nos termos da proposta, elas teriam sua política fiscal, monetária e cambial paralisadas ou fortemente constrangidas em razão desses limites. Em termos práticos, esses países seriam obrigados a sofrer grave recessão ou inflação por muitos anos para poderem adequar as demandas democráticas de governabilidade e legitimidade a limites de endividamento como esse. Qual seria o grande benefício desse projeto que compensaria tal desastre?
Acredito que o autor da proposta também tem essa preocupação. Por isso ele colocou no relatório uma ressalva que poderia ser reescrita, em nossas palavras, da seguinte forma para o caso internacional: “ok, voltar ao limite, uma vez ultrapassado é custoso, mas se o limite ao endividamento que propomos já existisse antes, esses países não teriam chegado a dívidas tão altas”. Pode ser, mas, se esse limite existisse antes, os países não poderiam ter feito as políticas fiscais e monetárias necessárias para salvar o mundo da crise de 2008. Essa teria sido muito pior do que a Depressão dos anos 30 e a economia mundial teria caído mais de 50%. A importância dos mercados financeiros globalizados para a economia mundial era em 2008 muito maior do que em 1929 e as bolhas muito maiores. Se hoje já ficamos preocupados com as guerras, terrorismo, pobreza, genocídios, migração em massa, não sabemos o que restaria da civilização se o PIB global caísse mais de 50% em poucos anos. Não acreditamos que esse seja um bom preço a pagar para cumprir uma meta contábil-legal. Se não é bom para as grandes potências, pode ser bom para o Brasil?
Acreditamos que o autor da proposta concorda conosco. Por isso, ele fez várias regras para flexibilizar o torniquete da restrição de endividamento e ainda fez a ressalva que pode ser resumida na seguinte proposição: se o governo no futuro achar o limite estreito, poderá pedir ao Congresso para ampliá-lo. Em outras palavras, diz: ao menos assim o governo seria obrigado a se explicar ao congresso o porquê do aumento do endividamento. Daí perguntamos: qual a razoabilidade científica de um torniquete que, quando atinge seu limite, tem que ser flexibilizado ou porque há crise econômica ou porque o governo tem boas razões para pedir ao congresso? Ora, quando a situação econômica é de pujança as receitas públicas crescem rapidamente, os juros são baixos e por isso a dívida pública não ultrapassa o limite. Ele é atingindo exatamente na crise, onde, sabemos que o limite precisa ser flexibilizado para que não ocorra um mal maior. Então para que serve o limite?
Outro ponto controverso é a escolha arbitrária do limite. Cabe perguntar por que o autor escolheu o número 4,4 e não 3,3 ou 5,5, 6,6 ou 9,9? Faltou a explicação científica para ter escolhido esse número. Sabemos apenas que 4,4 é bem abaixo dos atuais 5,6. Ou seja, a lei entraria em vigor já com o Estado brasileiro em descumprimento da meta.
Não existe número ideal ou base científica que pudesse dar uma explicação razoável para nenhum dos muitos limites de endividamento que os economistas conservadores tentam sugerir para o endividamento público.
A experiência Grega nos tem mostrado que limites de endividamento dados externamente ao poder público democraticamente eleito responsável pela política econômica têm se transformado em importante instrumento de chantagem sobre esse poder democraticamente eleito.
Mas não precisa de um poder internacional para que os limites de endividamento sejam uma restrição e chantagem ao poder democrático, basta um modelo institucional mal desenhado. No modelo institucional do presidencialismo de coalizão brasileiro, os congressistas unidos em torno de suas lideranças têm bastante poder sobre o que o Executivo pode ou não realizar. Porém, ao contrário do parlamentarismo verdadeiro, eles não têm responsabilidade individual sobre o que acontece no país, se ele está em crise ou não.
Pelo contrário, involuntariamente, se beneficiam das crises de governabilidade. O executivo é diretamente e facilmente responsabilizado por todos os problemas do país. Se estamos em crise, o governo sofre com a baixa popularidade e não elege sucessor. Pior, como existem os carbonários, pode até sofrer impedimento em caso de popularidade muito baixa. Já os mandatos dos congressistas, na grande maioria, pouco sofrem individualmente em termos materiais em caso de crises políticas ou econômicas. No presidencialismo não existe uma penalidade ou responsabilização objetiva para os parlamentares em caso de grave crise econômica ou política.
O chefe do Poder Executivo no parlamentarismo verdadeiro pode convocar novas eleições caso o Congresso não lhe dê apoio. Isso é uma forma de responsabilizar o Congresso em situações de crise. Aqui no Brasil é o contrário, quanto pior a crise, quanto mais fragilizado é o Poder Executivo, mais ganham (involuntariamente) os congressistas individualmente, mais poder de barganha eles têm para conseguir aprovar projetos de lei contrários ao Poder Executivo ou mesmo à maioria da sociedade, mais cargos e benesses podem exigir do governo e das empresas e grupos de interesse em geral em troca do seu poder de voto. Em relação ao Poder Judiciário, em especial suas casas mais políticas o STF, o TSE e o MPF, temos uma lógica parecida, quando falta poder de liderança no Executivo. Dessa forma, o modelo de organização do Estado no Brasil tende para a instabilidade e para a dependência involuntária de um poder moderador externo ao Estado, que, no caso brasileiro, é a grande mídia e que nem sempre aposta na estabilidade e na governabilidade.
Na situação atual, onde o Poder Executivo ainda tem três anos pela frente e já está asfixiado por uma governabilidade restrita, uma baixa popularidade, conflitos internos e crise econômica, mais uma restrição ao endividamento público – ainda que tenha um longo horizonte de ajuste – é mais uma forma de constranger o único poder no Brasil que possui responsabilidade de manter a estabilidade política em favorecimento a poderes cujos membros não podem ser responsabilizados pela instabilidade.
Sabemos que o Senador Serra é um profissional e um intelectual responsável e jamais teria esse tipo de intenção. Porém, nos preocupa a avalanche de prerrogativas que o Congresso tem criado para impor constrangimentos ao Poder Executivo neste momento de fraqueza da Presidenta Dilma, alguns dos quais apoiados pelo Deputado Eduardo Cunha e pela oposição na Câmara dos Deputados.
No modelo de Presidencialismo de coalizão brasileiro, esse tipo de constrangimento ao executivo pode funcionar, à revelia das intenções dos autores, como o velho método do patrimonialismo: criar dificuldades para vender facilidades. Os custos das dificuldades recairão mais pesadamente sobre o executivo e apenas difusamente sobre a instituição do Congresso Nacional. Sobre os parlamentares individuais, que podem aproveitar oportunisticamente desse tipo de iniciativa, pouco recai. E no caso, não adianta que o idealizador do constrangimento tenha as melhores das intenções, cada parlamentar que pode usar seu voto como “meio de chantagem” poderá distorcer os princípios da democracia e agravar a crise econômica e de governabilidade.
Sem negar a culpa da Presidenta pelos próprios erros, desde que Eduardo Cunha foi eleito Presidente da Câmara dos Deputados, por coincidência, tem desabado sobre a presidente Dilma um monte de proposições legislativas, judiciais ou fiscalizatórias que tem colocado ela sempre em posição de ter que barganhar sobrevida e governabilidade, cabendo pouco espaço para propostas e debates construtivos. Esse não é o papel do Congresso Nacional nem do Judiciário, mas é uma tendência inexorável em caso de um Poder Executivo sem capacidade de liderança e com a legitimidade abalada. O enfraquecimento político da Presidenta Dilma abriu margem constrangimentos legais que, se continuarem sendo criados, em breve o Brasil estará ingovernável e, nesse caso, há o risco de crises muitos mais graves, soluções autoritárias e até guerra civil.
Ao falar isso, não estamos eximindo a Presidenta da responsabilidade que teve de destruir a própria popularidade em decorrência da rejeição do seu próprio programa de governo em favor do programa do adversário e da crise econômica criada depois da troca do seu Ministro da Fazenda. Mas acreditamos que restrições adicionais à gestão de política econômica expansionista só tornam o governo mais refém de um Congresso, cujos membros, por falta de prerrogativa constitucional, não tem como ser responsabilizados pela crise econômica e política e que, portanto, são tentados a aproveitar, se forem oportunistas, as crises para tentar aumentar seu próprio poder de barganha e conquistar de uma vez suas ambições políticas em cima do desmoronamento da economia do país, da política social e dos serviços públicos.
Dessa forma, se concordássemos com o mérito do projeto, sugeriríamos que este não seria um bom momento para avançar esse tipo de iniciativa.
Mas acreditamos que esse projeto possui problemas que nos obrigariam a votar contrariamente mesmo se não estivéssemos no meio de uma grave crise política e econômica. Aparentemente, as flexibilizações de prazo e circunstância previstas no projeto amenizariam as restrições econômicas que o atual e o próximo governo teriam em razão dos limites de endividamento. Mas há uma restrição menos visível que o projeto não pode mudar. Sabemos pela experiência internacional que os países podem ter dívidas públicas muito maiores do que a brasileira sem nenhuma dificuldade de emitir dívida e sem qualquer constrangimento econômico relevante. Porém, na presença de dispositivos legais, como o proposto no projeto, que tenham como penalidade a proibição de “novas operações de crédito”, o cenário é outro. Como os títulos de dívidas possuem prazos longos, na perspectiva de que exista uma restrição legal a novas operações de crédito, o risco de inadimplência da dívida pública aumenta muito, ao contrário do que o projeto sugere. É um tiro pela culatra.
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